quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pra você que acha que sabe tudo - fume maconha e leia seu filho duma puta

Notas sobre a experiência e o saber de
experiência*
Jorge Larrosa Bondía

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka

Costuma-se pensar a educação do ponto de vista
da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do
ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o
par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva
e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a
uma perspectiva política e crítica. De fato, somente
nesta última perspectiva tem sentido a palavra “reflexão”
e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão
sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipadora”
etc. Se na primeira alternativa as pessoas que trabalham
em educação são concebidas como sujeitos
técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as
diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos
cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na segunda
alternativa estas mesmas pessoas aparecem
como sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias
reflexivas, se comprometem, com maior ou
menor êxito, com práticas educativas concebidas na
maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo
isso é suficientemente conhecido, posto que nas últimas
décadas o campo pedagógico tem estado separado
entre os chamados técnicos e os chamados críticos,
entre os partidários da educação como ciência
aplicada e os partidários da educação como práxis
política, e não vou retomar a discussão.
O que vou lhes propor aqui é que exploremos
juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial
(sem ser existencialista) e mais estética (sem ser
esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par
experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é
sugerir certo significado para estas duas palavras em
distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto
lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar
algumas palavras e tratar de compartilhá-las.
E isto a partir da convicção de que as palavras
produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam
como potentes mecanismos de subjetivação.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,
creio que fazemos coisas com as palavras e, também,
que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas
a partir de nossas palavras. E pensar não é somente
“raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos
tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as
palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras
o modo como nos colocamos diante de nós mesmos,
diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.
E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem
como zôon lógon échon. A tradução desta expressão,
porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do
que “animal dotado de razão” ou “animal racional”.
Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido
da palavra, é justamente essa de traduzir logos por
ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal.
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa
que o homem tenha a palavra ou a linguagem como
uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra,
que todo humano tem a ver com a palavra, se dá
em palavra, está tecido de palavras, que o modo de
viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na
palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar
as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras,
cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com
as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar
palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,
não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com
as palavras, do que se trata é de como damos sentido
ao que somos e ao que nos acontece, de como
correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos
o que vemos ou o que sentimos e de como
vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer
outro lugar, como técnica aplicada, como práxis
reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não
é somente uma questão terminológica. As palavras
com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o
que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
são mais do que simplesmente palavras. E, por isso,
as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle
das palavras, pela imposição de certas palavras e
pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente
palavras, algo mais que somente palavras.
1. Começarei com a palavra experiência. Poderíamos
dizer, de início, que a experiência é, em espanhol,
“o que nos passa”. Em português se diria que a
experiência é “o que nos acontece”; em francês a experiência
seria “ce que nous arrive”; em italiano,
“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”;
em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,
“was mir passiert”.
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece,
o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.
Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado
para que nada nos aconteça.1 Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Em primeiro lugar pelo excesso de informação.
A informação não é experiência. E mais, a informação
não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário
da experiência, quase uma antiexperiência. Por
isso a ênfase contemporânea na informação, em estar
informados, e toda a retórica destinada a constituirnos
como sujeitos informantes e informados; a informação
não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades
de experiência. O sujeito da informação sabe
muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,
o que mais o preocupa é não ter bastante informação;
cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber
(mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no
sentido de “estar informado”), o que consegue é que
nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de
dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la
da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber
de experiência é que é necessário separá-lo de saber
coisas, tal como se sabe quando se tem informação
sobre as coisas, quando se está informado. É a língua
mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir
a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido
um livro ou uma informação, depois de ter feito uma
viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer
que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos
mais informação sobre alguma coisa; mas, ao
mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que
aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além disso, seguramente todos já ouvimos que
vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona
às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimento”
ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”.
Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade
entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob
a forma de informação, e como se aprender não fosse
outra coisa que não adquirir e processar informação.
E não deixa de ser interessante também que as velhas
metáforas organicistas do social, que tantos jogos permitiram
aos totalitarismos do século passado, estejam
sendo substituídas por metáforas cognitivistas, seguramente
também totalitárias, ainda que revestidas agora
de um look liberal democrático. Independentemente de
que seja urgente problematizar esse discurso que se
está instalando sem crítica, a cada dia mais profundamente,
e que pensa a sociedade como um mecanismo
de processamento de informação, o que eu quero apontar
aqui é que uma sociedade constituída sob o signo
da informação é uma sociedade na qual a experiência
é impossível.
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um
sujeito informado que, além disso, opina. É alguém
que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente
própria e, às vezes, supostamente crítica sobre
tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem
informação. Para nós, a opinião, como a informação,
converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância,
passamos a vida opinando sobre qualquer coisa
sobre que nos sentimos informados. E se alguém não
tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o
que se passa, se não tem um julgamento preparado
sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que
tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a
opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também
anula nossas possibilidades de experiência, também
faz com que nada nos aconteça.
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dispositivo
moderno para a destruição generalizada da
experiência.2 O periodismo destrói a experiência, sobre
isso não há dúvida, e o periodismo não é outra
coisa que a aliança perversa entre informação e opinião.
O periodismo é a fabricação da informação e a
fabricação da opinião. E quando a informação e a opinião
se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do
acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa
que o suporte informado da opinião individual, e o
sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história segundo
os velhos marxistas, não é outra coisa que o
suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um
sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação
e da opinião, um sujeito incapaz de experiência.
E o fato de o periodismo destruir a experiência
é algo mais profundo e mais geral do que aquilo
que derivaria do efeito dos meios de comunicação de
massas sobre a conformação de nossas consciências.
O par informação/opinião é muito geral e permeia
também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem,
inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam
de “aprendizagem significativa”. Desde pequenos
até a universidade, ao largo de toda nossa travessia
pelos aparatos educacionais, estamos submetidos
a um dispositivo que funciona da seguinte maneira:
primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opinar,
há que dar uma opinião obviamente própria, crítica
e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria
como a dimensão “significativa” da assim chamada
“aprendizagem significativa”. A informação seria o
objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa
reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação
subjetiva, é uma reação que se tornou para nós
automática, quase reflexa: informados sobre qualquer
coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maioria
das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso,
nos convertemos em sujeitos competentes para responder
como Deus manda as perguntas dos professores
que, cada vez mais, se assemelham a comprovações
de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me
o que você sabe, diga-me com que informação conta
e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo
periodístico do saber e da aprendizagem, o
dispositivo que torna impossível a experiência.
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais
rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa
demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E
com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente
substituído por outro estímulo ou por outra
excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento
nos é dado na forma de choque, do estímulo,
da sensação pura, na forma da vivência instantânea,
pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade,
pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem
a conexão significativa entre acontecimentos.
Impedem também a memória, já que cada acontecimento
é imediatamente substituído por outro que igualmente
nos excita por um momento, mas sem deixar
qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado
e opina, mas também é um consumidor voraz
e insaciável de notícias, de novidades, um curioso
impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente
excitado e já se tornou incapaz de silêncio.
Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,
tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o
choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade
e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória,
são também inimigas mortais da experiência.
Nessa lógica de destruição generalizada da experiência,
estou cada vez mais convencido de que os aparatos
educacionais também funcionam cada vez mais
no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos
aconteça. Não somente, como já disse, pelo funcionamento
perverso e generalizado do par informação/
opinão, mas também pela velocidade. Cada vez estamos
mais tempo na escola (e a universidade e os cursos
de formação do professorado são parte da escola),
mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação
permanente e acelerada, da constante atualização,
da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o
tempo como um valor ou como uma mercadoria, um
sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer
coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa,
que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa
obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este
sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se
organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada
vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos
sempre acelerados e nada nos acontece.
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece
importante porque às vezes se confunde experiência
com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros
e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber
que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se
adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da
prática, como se diz atualmente. Quando se redige o
currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência
de trabalho. Tenho ouvido falar de certa tendência
aparentemente progressista no campo educacional
que, depois de criticar o modo como nossa
sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende
implantar e homologar formas de contagem de
créditos para a experiência e para o saber de experiência
adquirido no trabalho. Por isso estou muito interessado
em distinguir entre experiência e trabalho e,
além disso, em criticar qualquer contagem de créditos
para a experiência, qualquer conversão da experiência
em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha
tese não é somente porque a experiência não tem nada
a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que
o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas,
com as palavras e com as coisas que chamamos
trabalho, é também inimiga mortal da experiência.
O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado
que opina, além de estar permanentemente agitado
e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer,
que pretende conformar o mundo, tanto o mundo
“natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto
a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, segundo
seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho
é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito
moderno é animado por portentosa mescla de otimismo,
de progressismo e de agressividade: crê que pode
fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum
dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o
que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O
sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do
ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade.
Sempre está a se perguntar sobre o que pode
fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
regular algo. Independentemente de este desejo estar
motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o
sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar
as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os
políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos,
os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos
e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua
existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, transbordantes
de opiniões e superestimulados, mas também
sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por
isso, porque sempre estamos querendo o que não é,
porque estamos sempre em atividade, porque estamos
sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não
podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção,
um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre
o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência.
Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse
sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião,
do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do
fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol,
nessa língua em que a experiência é “o que nos passa”,
o sujeito da experiência seria algo como um território
de passagem, algo como uma superfície sensível
que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em
que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da
experiência é um ponto de chegada, um lugar a que
chegam as coisas, como um lugar que recebe o que
chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português,
em italiano e em inglês, em que a experiência soa como
“aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to
us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço
onde têm lugar os acontecimentos.
Em qualquer caso, seja como território de passagem,
seja como lugar de chegada ou como espaço do
acontecer, o sujeito da experiência se define não por
sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade,
por sua disponibilidade, por sua abertura.
Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição
entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posNotas
sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 25
to”. Do ponto de vista da experiência, o importante
não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem
a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição”
(nossa maneira de impormos), nem a “proposição”
(nossa maneira de propormos), mas a “exposição”,
nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o
que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é
incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,
ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É
incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa,
a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a
quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra
experiência. A palavra experiência vem do latim
experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri,
que se encontra também em periculum, perigo. A raiz
indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de
tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz
que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:
peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através,
perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego
de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da
experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando um espaço indeterminado e perigoso,
pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade,
sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de estranho4 e
também o ex de existência. A experiência é a passagem
da existência, a passagem de um ser que não tem
essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente
“ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,
imanente, contingente. Em alemão, experiência é
Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo
alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e
gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas
como nas latinas, a palavra experiência contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Em Heidegger (1987) encontramos uma definição
de experiência em que soam muito bem essa
exposição, essa receptividade, essa abertura, assim
como essas duas dimensões de travessia e perigo que
acabamos de destacar:
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos
tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos
acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar
o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida
que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer
dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo
que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos
verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito
alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito
que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro
de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não
um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes,
mas um sujeito que perde seus poderes precisamente
porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é
também um sujeito sofredor, padecente, receptivo,
aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito
incapaz de experiência, seria um sujeito firme,
forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático,
autodeterminado, definido por seu saber, por seu
poder e por sua vontade.
Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode lerse
outro componente fundamental da experiência: sua
capacidade de formação ou de transformação. É
experiência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou
que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos
transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação.
5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o
sujeito da experiência é um território de passagem,
então a experiência é uma paixão. Não se pode captar
a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir
de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de
possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da
paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-
se a várias coisas.
Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento.
No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente
passivo. O sujeito passional não é agente,
mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos,
como um viver, ou experimentar, ou suportar,
ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada
que ver com a mera passividade, como se o sujeito
passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes,
inclusive, algo público, ou político, ou social,
como um testemunho público de algo, ou uma prova
pública de algo, ou um martírio público em nome de
algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita
solidão, no mais completo anonimato.
“Paixão” pode referir-se também a certa heteronomia,
ou a certa responsabilidade em relação com o
outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade
ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmente,
de outra liberdade e de outra autonomia diferente
daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A
paixão funda sobretudo uma liberdade dependente,
determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não
nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que
está fora de mim, de algo que não sou eu e que por
isso, justamente, é capaz de me apaixonar.
E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma experiência
do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão,
cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de
um desejo que permanece desejo e que quer permanecer
desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação
para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito
apaixonado não possui o objeto amado, mas é
possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não
está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio,
mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado
pelo alheio, alienado, alucinado.
Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão,
no sentido de que o que quer o sujeito é,
precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro,
sua dependência daquele por quem está apaixonado.
Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre
felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado
encontra sua felicidade ou ao menos o
cumprimento de seu destino no padecimento que sua
paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é precisamente
sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito
apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa
que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão
extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma
relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no
horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e
desejada como verdadeira vida, como a única coisa
que vale a pena viver, e às vezes como condição de
possibilidade de todo renascimento.
6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o
que poderia ser a experiência e o sujeito da experiência.
Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia
e do perigo, da abertura e da exposição, da receptividade
e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao
saber da experiência. Definir o sujeito da experiência
como sujeito passional não significa pensá-lo como
incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.
A experiência funda também uma ordem epistemológica
e uma ordem ética. O sujeito passional tem também
sua própria força, e essa força se expressa produtivamente
em forma de saber e em forma de práxis. O
que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber
científico e do saber da informação, e de uma práxis
distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber de experiência se dá na relação entre o
conhecimento e a vida humana. De fato, a
experiência é uma espécie de mediação entre ambos. É importante,
porém, ter presente que, do ponto de vista da
experiência, nem “conhecimento” nem “vida” significam
o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a
ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito,
que somente pode crescer; algo universal e objetivo,
de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de
nós, como algo de que podemos nos apropriar e que
podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente
com o útil no seu sentido mais estreitamente
pragmático, num sentido estritamente instrumental. O
conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente,
dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro.
Recordem-se as teorias do capital humano ou essas
retóricas contemporâneas sobre a sociedade do
conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade
da informação.
Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimensão
biológica, à satisfação das necessidades (geralmente
induzidas, sempre incrementadas pela lógica
do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade.
Pense-se no que significa para nós “qualidade
de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse
de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o
conhecimento e a vida não é outra coisa que a apropriação
utilitária, a utilidade que se nos apresenta como
“conhecimento” para as necessidades que se nos dão
como “vida” e que são completamente indistintas das
necessidades do Capital e do Estado.
Para entender o que seja a experiência, é necessário
remontar aos tempos anteriores à ciência moderna
(com sua específica definição do conhecimento objetivo)
e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a
definição moderna de vida como vida burguesa). Durante
séculos, o saber humano havia sido entendido
como um páthei máthos, como uma aprendizagem no
e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este
é o saber da experiência: o que se adquire no modo
como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao longo da vida e no modo como vamos dando
sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da
experiência não se trata da verdade do que são as coisas,
mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.
E esse saber da experiência tem algumas
características essenciais que o opõem, ponto por ponto,
ao que entendemos como conhecimento.
Se a experiência é o que nos acontece e se o saber
da experiência tem a ver com a elaboração do sentido
ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um
saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de
uma comunidade humana particular; ou, de um modo
ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela
ao homem concreto e singular, entendido individual
ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua
própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o
saber da experiência é um saber particular, subjetivo,
relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o
que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem
a mesma experiência. O acontecimento é comum,
mas a experiência é para cada qual sua, singular e de
alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo
concreto em quem encarna. Não está, como o
conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem
sentido no modo como configura uma personalidade,
um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma
forma humana singular de estar no mundo, que é por
sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma
estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência
não pode beneficiar-se de qualquer alforria,
quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de
outro, a menos que essa experiência seja de algum
modo revivida e tornada própria.
A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha,
então, sua qualidade existencial, isto é, sua
relação com a existência, com a vida singular e concreta
de um existente singular e concreto. A experiência
e o saber que dela deriva são o que nos permite
apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria,
pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los
Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, quase
tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos
existência a esta vida própria, contingente e finita, a
essa vida que não está determinada por nenhuma essência
nem por nenhum destino, a essa vida que não
tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora
dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo
e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também
impossível a existência.
7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e
alcança sua formulação mais elaborada em Descartes,
desconfia da experiência. E trata de convertê-la em
um elemento do método, isto é, do caminho seguro da
ciência. A experiência já não é o meio desse saber que
forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade,
mas o método da ciência objetiva, da ciência
que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do
mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental.
Mas aí a experiência converteu-se em experimento,
isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível
da ciência. A experiência já não é o que nos
acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um
sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua
cara legível, a série de regularidades a partir das quais
podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um
páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela
prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades
objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao
homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da
experiência e uma vez separado o conhecimento da
existência humana, temos uma situação paradoxal.
Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos,
uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma
enorme pobreza dessas formas de conhecimento que
atuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-
a. A vida humana se fez pobre e necessitada,
e o conhecimento moderno já não é o saber ativo
que alimentava, iluminava e guiava a existência dos
homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado
dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pretende
evitar a confusão de experiência com experimento
ou, se se quiser, limpar a palavra experiência
de suas contaminações empíricas e experimentais, de
suas conotações metodológicas e metodologizantes.
Se o experimento é genérico, a experiência é singular.
Se a lógica do experimento produz acordo, consenso
ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência
produz diferença, heterogeneidade e pluralidade.
Por isso, no compartir a experiência, trata-se
mais de uma heterologia do que de uma homologia,
ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona
heterologicamente do que uma dialogia que funciona
homologicamente. Se o experimento é repetível,
a experiência é irrepetível, sempre há algo como a
primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível,
a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza
que não pode ser reduzida. Além disso, posto
que não se pode antecipar o resultado, a experiência
não é o caminho até um objetivo previsto, até uma
meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura
para o desconhecido, para o que não se pode antecipar
nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.

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